Cristãos no inferno iraquiano

Bashiqa, Iraque, 22/05/2013 – Luis Shabi lembra com saudades dos seus nove anos de noviciado em Roma e uma viagem de automóvel por toda a Europa antes de voltar ao Iraque, em 1969.

Cristãos no inferno iraquiano

- Karlos Zurutuza/IPS

"Eram outros tempos", suspira o arcebispo caldeu de Bagdá em um bunker no coração da capital iraquiana. Seu escritório fica no sótão da igreja de Santa Maria do Rosário, no leste da cidade. É um templo humilde, protegido por muros de concreto, arame farpado e soldados de guarda junto a um veículo blindado.

"Sempre fomos um povo pacífico e trabalhador, com uma reputação de contribuir para a cultura iraquiana com numerosos escritores, poetas, filósofos", afirmou o prelado cristão, vestido com uma batina imaculada e usando um barrete rosa. "Mas, desde 2003, os extremistas reforçam a imagem de que somos uma espécie de recém-chegados, algo como uma extensão do Ocidente no Oriente Médio", acrescentou Shabi, passando diretamente do inglês para o italiano.

O fato de haver alguns ministros cristãos durante o regime de Saddam Hussein (1979-2003) "só faz piorar as coisas", ressaltou o arcebispo. "O que fez a Europa para nos ajudar? E Roma? Nem as autoridades civis nem as religiosas na Europa moveram um dedo por nós no pior momento de nossa história", lamentou. Depois da dizimada comunidade mandea do Iraque – nove em cada dez membros dessa antiga religião do mundo mediterrâneo morreram ou fugiram desde 2003 -, a cristã foi a mais castigada na última década.

O Alto Comissariado das Nações Unidas para os Refugiados afirma que aproximadamente metade da população cristã abandonou o país a partir de 2003, quando começou a ocupação norte-americana. Por outro lado, o Conselho Assírio da Europa diz que a própria Constituição iraquiana é uma das culpadas pela marginalização que sofrem as minorias. "O Islã é a religião do Estado e fundamento básico de sua legislação", afirma o Artigo 2.1 da Magna Carta iraquiana de 2005.

"Não somos árabes, mas semitas. Falamos arameu e estamos na Mesopotâmia desde os tempos de Hamurabi. Somos filhos de Abraão e Nabucodonosor, mas nosso futuro no Iraque não passa de amanhã", argumentou o arcebispo Shabi, sob toneladas de pedra e concreto. A dez minutos a pé desse lugar, se ergue majestosa a espigada e vanguardista fachada da Igreja de Nossa Senhora do Perpétuo Socorro. Após passar por um labirinto de charcos, barro e cimento, agentes uniformizados com camuflagem cinza do Ministério do Interior cuidam do acesso ao templo. O prédio foi reformado no ano passado. Mas aqui ninguém esquece.

"Eram cinco. Pularam os muros de concreto e entraram atirando na igreja gritando 'Deus é grande'. Diziam pertencer ao Estado Islâmico do Iraque (um grupo vinculado à Al Qaeda). Foi no dia 31 de outubro de 2011. Estávamos em meio à missa." O trágico episódio permanece na memória de Aysur Said, o atual pároco. Seu antecessor, padre Wasim Tabih, foi um dos 50 assassinados no pior ataque sofrido por esta comunidade desde 2003. "Alguns morreram pelos disparos, outros asfixiados. Vários foram fechados na sala que usamos para nos vestir. Não tem janela e o ar logo acabou", contou Said à IPS.

Depois do atentado, os cristãos do Iraque reclamaram uma região autônoma própria nas planícies da região de Nínive, no noroeste do país. Trata-se do lugar em que a Bíblia situa o Jardim do Éden, mas hoje também é zona de litígio entre curdos e árabes. A 350 quilômetros de Bagdá, Mosul é sua capital administrativa, palco desde dezembro de maciços protestos antigovernamentais. Bashiqa, a 30 quilômetros de Mosul, é uma das cidades que muitos cristãos reclamam para seu projeto autonomista. Da igreja assíria ortodoxa de Mart Shmouni, o pároco Daniel toma distância dessa reclamação, recordando "a importância da unidade entre os iraquianos".

Porém, este religioso de 23 anos reconhece que não é fácil. "A nova autoridade de Bagdá não é capaz de nos proteger, por isso nosso povo continua fugindo em massa", pontuou Daniel. "No entanto, nos últimos meses acolhemos muitas famílias chegadas da Síria, que pedem abrigo em nossos monastérios e igrejas. Muitas fugiram repentinadamente e chegam quase sem nada", acrescentou sobre a guerra no país vizinho este jovem que presume ser o sacerdote mais jovem ordenado no Iraque.

Apesar de sua proximidade com a instável Mosul, Bashiqa desfruta de uma relativa estabilidade, algo que o sacerdote atribui à presença de soldados curdos na região. "Para muitos, Bashiqa é uma parada no caminho em sua fuga para a Região Autônoma Curda, onde a segurança é completa", indicou o pároco. Kirkuk, 230 quilômetros a noroeste de Bagdá, também se encontra em uma espécie de limbo legal entre a capital do país e o governo regional curdo.

De Kirkuk, Imad Yokhana Yago, deputado pelo Movimento Democrático Assírio, denuncia o "genocídio pelas mãos de islâmicos" e a "fuga em massa" de seu povo, por isso defende um projeto na medida de sua minguante comunidade. "Temos medo de uma nova guerra pelas tensões entre curdos e árabes sunitas e xiitas", afirmou à IPS. "Uma região autônoma cristã em Nínive protegeria nossa comunidade e faria as vezes de zona de amortização entre os grupos que se enfrentam", destacou o parlamentar.

Entretanto, é um projeto controvertido e há quem tema que essa região se converta em uma espécie de gueto ao se deslocar o povo cristão. Da direção do Movimento Cristão Assírio, Yousif Eisho discorda. "A repressão que estamos sofrendo não chega unicamente dos árabes do Iraque. Irã, Arábia Saudita, são muitos os agentes estrangeiros envolvidos na limpeza étnica de nosso povo", afirmou este homem de profundos olhos azuis. "Este gueto acabará sendo uma realidade se a ingerência externa continuar sendo permitida", ressaltou. Envolverde/IPS

Karlos Zurutuza

Leave a Reply

Your email address will not be published. Required fields are marked *