O que importa mais, a guerra contra a aids ou somente a guerra?

defensa O que importa mais, a guerra contra a aids ou somente a guerra?

O orçamento de muitos países africanos reflete um interesse maior pelas armas do que pelo combate à mortífera pandemia do vírus HIV. Foto: Thomas Martínez/IPS

 

Johannesburgo, África do Sul e Nova York, Estados Unidos, 14/8/2014 – Dizem que há uma guerra em curso e que se luta contra o mortal vírus da deficiência imunológica humana (HIV). Esta guerra é travada em todo o mundo, mas seu principal campo de batalha é a África subsaariana, onde vivem sete de cada dez pessoas com HIV no planeta, cerca de 24,7 milhões no ano passado. A região sofreu até 1,3 milhão de mortes relacionadas com a aids, causada pelo vírus, no mesmo ano, segundo a Organização das Nações Unidas (ONU).

Um exército improvisado trava a guerra contra a aids. Às vezes é composto por funcionários bem vestidos, sentados em salas de conferências enquanto distribuem fundos de assistência. Outras vezes se trata de soldados rasos, como o pessoal de saúde e os ativistas antiaids em cada comunidade, espalhados em desoladas zonas rurais, sem água corrente, e muito menos terapia antirretroviral.

Os fundos para a aids são uma preocupação crescente, já que competem com muitos problemas de saúde. Mas uma olhada no orçamento da defesa de vários países assolados pelo HIV mostra um cenário alarmante das prioridades públicas, já que os enormes gastos militares desmentem o argumento de que o principal obstáculo para ganhar a guerra contra a aids é o dinheiro.

É verdade que o Quênia sofre atentados do grupo islâmico Al Shabaab. Ainda assim, cinco em cada dez quenianas grávidas que vivem com HIV não recebem a terapia antirretroviral que protegeria seus bebês.

A escassez de fundos em Moçambique deixa em relevo os últimos gastos militares do país. Daniel Kertesz, representante da Organização Mundial da Saúde (OMS) nesse país do sudeste africano, disse à IPS que o programa de saúde iniciado em 2008 tem déficit de US$ 200 milhões por ano. Moçambique é muito pobre e ocupa o oitavo lugar mundial de pessoas infectadas com HIV, com 1,6 milhão em uma população de 24 milhões de pessoas. “Hoje em dia, Moçambique gasta por ano em saúde entre US$ 30 e US$ 35 por pessoa. A OMS recomenda um mínimo de US$ 55 a US$ 60 por pessoa ao ano”, destacou.

O governo anunciou que acordou com a Romênia oito aviões de caça, que havia descartado há 15 anos, e que receberá gratuitamente três aviões militares Tucano da brasileira Embraer, em troca da compra de outras três aeronaves.

Um informe de 2014 da Unidade de Inteligência Econômica, uma divisão independente dentro do grupo The Economist, prevê um drástico aumento no gasto com segurança pública em Moçambique, devido em parte à compra pelo Ministério da Defesa de 24 barcos pesqueiros e seis navios-patrulha e interceptadores por US$ 300 milhões, equivalente à metade do orçamento nacional de saúde em 2014, de US$ 635,8 milhões.

Na mesma semana em que oito caças renovados pousaram no aeroporto de Maputo, a imprensa informou que o principal hospital da província de Tete, rica em carvão, ficou sem água durante cinco dias. De fato, o sistema de saúde pública está em situação tão desesperadora que o Plano de Emergência da Presidência dos Estados Unidos para o Alívio da Aids (PEPFAR) equivale a 90% do orçamento anual que o Ministério da Saúde destina à pandemia.

“O orçamento que o Estado destina aos programas sociais não cresce tanto como o gasto com exército, defesa e segurança”, apoontou Jorge Matine, pesquisador do Centro de Integridade Pública. “Estamos pressionando para que exista transparência em torno da compra, por milhões de dólares, de embarcações comerciais e militares”, disse à IPS. Uma rede de organizações não governamentais pediu ao governo que explique “sua decisão de gastar esse dinheiro sem a autorização do Parlamento, quando o país sofre grave escassez de pessoal e de suprimentos no setor da saúde”, acrescentou.

A rede argumenta que, se os gastos de defesa se mantivessem no nível de 2011, o país economizaria US$ 70 milhões. Com isso poderia comprar 1.400 ambulâncias, ou 11 por distrito, quando muitos distritos têm apenas uma ou duas, ou, ainda, importar 21% a mais de medicamentos.

Um padrão semelhante ocorre em todo o continente onde, segundo o Instituto Internacional de Estudos para a Paz de Estocolmo (Sipri), o gasto militar atingiu US$ 44,4 bilhões em 2013, aumento de 8,3% em relação a 2012. A alta renda obtida com o petróleo alimenta as compras de Angola e Argélia.

A Campanha do Cessar-Fogo, com sede na África do Sul, informou que os acordos de armas com empresas privadas também prosperam na África, já que se prevê que os governos assinarão negócios com empresas internacionais de defesa por aproximadamente US$ 20 bilhões na próxima década.

Ao mesmo tempo, a Declaração de Abuja de 2001, na qual os mandatários da União Africana se comprometeram a destinar pelo menos 15% do produto interno bruto à saúde, “nem mesmo se concretizou”, pontuou Vuyiseka Dubula, secretária-geral da sul-africana Campanha de Ação pelo Tratamento. “Pouquíssimos países se aproximaram dos 12%, incluindo alguns dos países africanos mais ricos, como África do Sul e Nigéria”, disse à IPS.

Entre 2000 e 2005, “quase 400 mil pessoas morreram de aids na África do Sul. Nesse mesmo período, gastamos tanto dinheiro em armas desnecessárias que se pode perguntar se isso foi um uso responsável dos recursos públicos”, acrescentou Dubula.

Moçambique é um triste exemplo do fracasso de Abuja. Já em 2001 seu orçamento de saúde era 14% do total do país, quase cumprindo a meta acordada na capital nigeriana. Em 2011 caiu para o mínimo de 7% e desde então arranha os 8%.

“Os fundos refletem as prioridades do governo”, disse Tedros Adhanom Ghebreyesus, atual chanceler e ex-ministro da Saúde da Etiópia. “Vimos que os países com vontade política de reformular seus setores de saúde reforçam os fundos e investem seriamente”, enfatizou à IPS. Se isso é certo, o orçamento de muitos países africanos reflete um maior interesse pelas armas do que pelo combate à mortífera pandemia do HIV.

O gasto militar na África

Angola gastou 8,4% de seu orçamento de US$ 69 bilhões na defesa e somente 5,3% na saúde, em 2013.

Em 2013, os gastos militares de US$ 3,4 bilhões do Marrocos superaram com juros o orçamento da saúde, de pouco mais de US$ 1,4 bilhão.

Sudão do Sul gastou 1% de seu PIB em saúde e 9,1% nas áreas militar e de defesa em 2012. Envolverde/IPS

Kanya D'Almeida

Kanya D'Almeida is a Sri Lankan journalist, currently based in Washington D.C. Kanya joined IPS as a United Nations correspondent in October 2010, where she covered the Millennium Development Goals with a strong focus on gender and ecological justice in Asia, Africa and the Middle East and the problems of neocolonial development in the global South. As IPS's Washington, D.C. correspondent, she monitors the global impacts of the Bretton Woods institutions, United States economic and foreign policy in the global South, the actions of transnational corporations and both national and international ecological crises. Kanya earned her B.A. from Hampshire College in Amherst, Massachusetts, where she completed a double major in political science and fiction writing, and produced a book of essays and short stories on women and war in Sri Lanka. She is currently a member of Scientific Soul Sessions, in Harlem, New York.

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